Bebês que não choram, mulheres em busca de sentido
Maternidade de bebês reborns: quando a fantasia do cuidado sem frustração revela a solidão contemporânea
Nos últimos meses, como muitas pessoas, fui atravessada por um fenômeno curioso e, de certo modo, perturbador: mulheres adultas que cuidam de bebês reborns — bonecas hiper-realistas que simulam recém-nascidos. O documentário de Chico Barney escancarou esse universo. Encontros regionais, grupos de apoio, vídeos no tiktok e no instagram. Influenciadoras exibem com orgulho sua rotina materna com bonecos de silicone, num misto de performance, afeto e lifestyle.
De início, confesso, senti estranhamento. Uma sensação de distopia. Mas algo em mim me impediu de julgar. Como socióloga, filósofa e terapeuta interessada na vida psíquica e afetiva das mulheres, percebi que aquilo não era só um modismo ou um hobby excêntrico — era um sintoma. E, como todo sintoma social, merecia escuta.
A pergunta que me guiou foi: o que leva algumas mulheres adultas a investirem tempo, energia e libido no cuidado com bonecas, tratando-as como filhos reais?
A maternidade como função social e como sentido existencial
Durante séculos, a socialização feminina nos empurrou para o lugar do cuidado. Meninas aprendem desde cedo a exercer o papel de cuidadoras: da casa, dos irmãos, dos pais, dos maridos, dos filhos. A maternidade, por muito tempo — e ainda hoje — funciona como um atalho para o reconhecimento social. Mesmo que uma mulher não tenha realizado seus sonhos, se é mãe, ela “é alguém”.
Esse imaginário não desaparece com a entrada da mulher na vida pública. Ele se adapta. Persiste. E, muitas vezes, continua funcionando como uma promessa de sentido existencial. O mundo pode falhar, as instituições podem ruir, a mulher pode perder status ou espaço — mas o “ser mãe” permanece como símbolo de completude, bondade e valor.
A coletividade em torno dos bebês reborns é, em certo sentido, um novo tipo de maternidade simbólica. Sem fraldas para trocar, sem noites em claro, sem demandas reais — mas com afeto, com visibilidade e com reconhecimento social nas redes. Uma maternidade sem as dores da maternidade. Uma fantasia de perfeição.
O medo da autonomia e o abrigo do cuidado
Na obra o complexo de cinderela, Colette Dowling aponta como muitas mulheres internalizam um medo inconsciente da independência. Elas renunciam aos próprios desejos, individualidade e autonomia em troca da segurança de cuidar de alguém — esperando, no fundo, que esse alguém cuide delas em retorno.
Cuidar pode se tornar, assim, um esconderijo: um modo de escapar da angústia da liberdade. Mas esse abrigo tem um custo. Não raro, essas mulheres acabam se sentindo ressentidas, frustradas, invisíveis. Quando percebem que dedicaram a vida ao outro e, mesmo assim, não foram amadas ou reconhecidas como esperavam.
Cuidado sem conflito, relação sem dor
O mundo do trabalho pode ser cruel. A exigência de performance, a competição, o medo do fracasso — tudo isso assusta. Mas o desejo de pertencer, de ser admirada, de ser amada não desaparece. Ele apenas encontra novas formas de se expressar. E, para algumas mulheres, os bebês reborns se tornam uma dessas formas.
Eles oferecem uma relação de afeto sem frustração. Um elo sem conflito. Uma companhia que devolve ternura sem exigir nada. Assim como algumas relações sexuais se deslocam para bonecas infláveis – no Japão- livres das tensões do desejo real, os reborns representam um outro lado da mesma moeda: o desejo de viver vínculos que não nos confrontem, não nos desestabilizem, não nos cobrem.
O paradoxo da intimidade sem risco
Zygmunt bauman, em amor líquido, nos alerta para os perigos de uma sociedade que deseja conexão sem compromisso, apego sem peso, vínculo sem dor. Vivemos tempos em que queremos os benefícios do amor sem seus riscos. As relações se tornam descartáveis, higienizadas, superficiais. E, nesse cenário, não é estranho que algumas pessoas prefiram relações com objetos a relações com pessoas.
Afinal, bebês reborns não choram. Não frustram. Não exigem. Permitem que a mulher seja uma “mãe perfeita” sob os holofotes, sem nunca precisar enfrentar as contradições do cuidado real. Mas o que isso revela sobre nós? Talvez, que estejamos tão assustados com a vulnerabilidade do encontro humano, que preferimos brincar de amar do que nos arriscar a realmente amar.
No fundo, talvez os bebês reborns — assim como tantas relações digitais, tantos amores líquidos — sejam apenas um espelho da nossa era: uma tentativa desesperada de viver o vínculo sem dor, a intimidade sem presença, a relação sem frustração. Mas não há encontro verdadeiro onde não há fricção. E uma vida sem o outro real, mesmo que segura, corre o risco de se tornar uma existência plastificada. Sem grito, sem lágrima — e sem alma.
Referências bibliográficas:
1. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
2.DOWLING, Colette. O complexo de Cinderela: o medo inconsciente das mulheres à independência. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
Seguindo essa linha de reflexão, neste final de semana assisti a um filme que, embora classificado como terror, despertou em mim uma série de questionamentos. A Acompanhante Perfeita retrata uma sociedade em que já é possível adquirir androides hiper-realistas, programados para atender exatamente aos desejos de seus proprietários — desde traços físicos até comportamentos afetivos. Esses robôs são configurados para amar incondicionalmente, obedecer sem questionar e se moldar perfeitamente às expectativas de quem os compra. O mais perturbador é que essa ficção talvez não esteja tão distante de nossa realidade.
Adorei a sua reflexão, Jéssica. Li também na revista TPM, a escritora Iana Villela fazer uma comparação sobre o apego de homens que jogam videogames, são tarados por anime e RPG e a resposta da sociedade a isso. Um tanto quanto diferente à dada às mulheres que colecionam e cuidam de bebês reborn. Achei a comparação pertinente porque evidencia os pesos diferentes para cada gênero.
A gente bem sabe que na infância é nos dado brinquedos que são treinamentos para os papéis sociais que são esperados de nós: cuidadoras de casa (porque muitas vezes nem donas somos, as escritoras geralmente estão nos nomes dos homens), mães e cozinheiras.
A pressão é tamanha que são poucas as mulheres que têm hobbies ou que se permitem um momento de ócio ou descanso. Então, se algumas estão encontrando algo lúdico nesta coisa de reborn acho um sintoma interessante de ser avaliado e não apenas julgado.
Eu confesso que também senti um desconforto quando vi as primeiras postagens sobre isso. Assisti tudo meio incrédula. E para falar a verdade, cada vez mais está mais difícil saber o que é real do imaginário, do artificial. Eu leio qualquer coisa na internet e já vou conferir se a pessoa que escreveu existe, verifico se a imagem não foi gerada por AI. É um tempo e um desgate grande e que consome o tempo de tela. Agradeço a troca!
Logo que soube deses bebês reburns achei bizarro...tanto quanto as relações com bonecas inflaveis e pessoas que se identificam como animais...conversando com minha filha psicóloga ela pautou basicamento o que você relata, isso é sintoma. Sintoma da nossa sociedade como um todo, com as pressões de sermos felizes, prósperos, seguidores de regras, de sermos reconhecidos.....eu estou ainda digerindo tudo isso. Obrigada por colocar um pouco de luz no assunto.