Mulheres bem-sucedidas e a solidão: um dilema real ou uma armadilha social?
Uma análise do Animus no filme " O diabo veste prada"
Mulheres bem-sucedidas e a solidão: um dilema real ou uma armadilha social?
Nos últimos anos, o debate sobre a solidão das mulheres bem-sucedidas tem ganhado cada vez mais força. Histórias de mulheres que alcançam altos patamares na carreira, mas permanecem solteiras ou enfrentam dificuldades nos relacionamentos, são constantemente utilizadas para questionar se o sucesso feminino tem um custo alto demais. Esse dilema, que ressoa na vida real, também está presente no cinema – e um dos exemplos mais icônicos é O Diabo Veste Prada.
O sucesso e a solidão no imaginário social
No filme, Miranda Priestly, editora-chefe de uma renomada revista de moda, é retratada como uma mulher poderosa, impecável e implacável. No entanto, sua vida pessoal é marcada pelo divórcio e pelo afastamento emocional. Andrea Sachs, sua assistente, inicia a trama como uma jovem idealista e comprometida com um relacionamento amoroso estável, mas, à medida que mergulha no universo competitivo da moda, vê sua vida pessoal ruir. O filme sugere que, para ser uma mulher bem-sucedida, é preciso renunciar à estabilidade emocional e à vida afetiva.
Esse imaginário, amplamente difundido, reflete uma construção social que utiliza a suposta "solidão" das mulheres poderosas como um argumento para convencê-las a renunciar a suas ambições. A ideia de que "mulheres bem-sucedidas não são escolhidas" se torna uma narrativa opressora, quase como um aviso: ou você se dedica à carreira, ou constrói um relacionamento. Declarações como a do CEO do G4, que disse recentemente "Deus me livre de casar com uma mulher CEO", reforçam essa perspectiva e colocam a mulher diante de uma encruzilhada injusta.
Influências históricas e psicológicas
Mas será que essa é, de fato, a única alternativa? Ou estamos apenas reproduzindo um discurso que desconsidera novas formas de viver o sucesso e os relacionamentos?
A psicologia analítica investiga como o psiquismo se desenvolveu ao longo dos séculos e sua relação com a história e a produção cultural. Dessa forma, nosso inconsciente coletivo e pessoal é influenciado pelo acúmulo de histórias da humanidade. Não podemos ignorar que, por séculos, bilhões de mulheres estiveram limitadas a funções específicas, como mãe e esposa, e, na divisão sexual do trabalho, restritas em muitas culturas às funções de cuidado e manutenção dos relacionamentos. Essa realidade histórica influenciou profundamente o psiquismo feminino, tanto a partir dos arquétipos quanto dos complexos e afetos comuns às mulheres. A entrada da mulher no mercado de trabalho é extremamente recente em comparação com toda a história.
O Animus e sua influência na psique feminina
O Animus atua no psiquismo feminino como um complexo que impulsiona a mulher a agir e desenvolver seu pensamento, sua criatividade e sua inteligência. Sobre isso, Barbara Hanna comenta:
"O problema do Animus é, de fato, o problema por excelência para toda mulher moderna (...) Isso vem do fato de que há várias gerações há um excedente de mulheres (um fenômeno que já começou a se transformar em seu oposto). A natureza provavelmente nunca faz nada desnecessariamente ou sem sentido, e essa aparente perda de equilíbrio teve o resultado de fazer inúmeras mulheres deixarem o padrão consagrado de serem exclusivamente esposas e mães – ou, pelo menos, tias – para entrar na esfera profissional masculina em todas as variações. Por causa disso, uma mulher encontra seu problema de Animus como uma consideração primária em seu trabalho."
Barbara Hanna não sugere que a mulher não deva desenvolver seus aspectos intelectuais, criatividade e potencial de trabalho. Afinal, ela mesma foi uma grande intelectual de sua época. O que ela percebe, tanto através de suas pesquisas quanto da sua própria vida subjetiva, é o poder do Animus na vida psíquica da mulher. Sendo um complexo, à medida que a mulher assume uma posição ativa no mundo, ele ganha energia psíquica, tornando-se tão dominante que pode se transformar em um tirano interior. Essa dinâmica é bem representada no conto do Barba Azul, descrito em Mulheres que Correm com os Lobos.
Trecho do livro: Animus e Anima nos contos de fadas da Marie Von Franz
O fortalecimento excessivo do Animus pode enfraquecer o Eros na psique feminina. Para a psicologia analítica, o Eros é o princípio que possibilita os relacionamentos em diversas categorias. O Animus, por outro lado, está associado à razão, à lógica e à afirmação da individualidade, enquanto o Eros simboliza a empatia, o vínculo e a capacidade de se relacionar. Quando o Animus adquire energia excessiva, ele pode afetar o Eros, desconectando a mulher de si mesma e da vida, impactando sua própria realização.
Equilíbrio entre sucesso e vida pessoal
A mulher não precisa escolher entre trabalho, sucesso profissional e relacionamentos. Podemos e devemos desejar ambos. Para que isso aconteça, é necessário conscientizar-se da influência do Animus na psique e integrá-lo de forma equilibrada. A integração saudável desses dois aspectos permite que a mulher desenvolva tanto sua autonomia quanto sua capacidade de estabelecer relações significativas.
No filme O Diabo Veste Prada, Andrea precisa encontrar esse equilíbrio: em um primeiro momento, ela se afasta do Eros ao se identificar excessivamente com o Animus representado pelo mundo do trabalho. Porém, ao final, busca restaurar sua conexão com seu lado relacional sem necessariamente renunciar à sua potência profissional. O caminho para a realização feminina não precisa ser uma dicotomia entre carreira e afeto, mas uma jornada de integração e autenticidade.
HANNAH, Barbara. The Animus: The Spirit of Inner Truth in Women. Toronto: Inner City Books, 2006.
VON FRANZ, Marie-Louise. Anima e animus nos contos de fada. São Paulo: Paulus, 2021.
A indicação de hoje é óbvia. Indicarei o filme “ o diabo veste prada”. Mas sugiro que você assista esse filme usando as lentes da psicologia analítica e da influência do Animus na mulher.
A temática do Animus está gerando bastante debates. O que é o Animus? Como ele pode ajudar e atrapalhar a mulher? É um assunto tão complexo que não cabe em tão poucas linhas. Pensando nisso, preparei um Worshop para aprofundar o debate e torná-lo acessível para toda mulher que sequer conhece sobre psicologia mas que sabe que existe um tirano interior agindo dentro dela. Para saber mais: https://jessicapetit.kpages.online/eduqueseutiranointerior
Com potência de agir e afetos ativos,
Jéssica Petit
Adorei como você coloca na mesa um dilema real: o sucesso não precisa significar viver em solidão. Seu texto fez com que eu refletisse sobre quantas “Mirandas” do dia a dia, profissionalmente empoderadas, acabam pagando um preço alto nas relações e na intimidade. Obrigada por trazer esse tema com clareza e coragem.